terça-feira, 18 de março de 2008

Essa questão eu vou "levar pra justiça"

Olá novamente. Neste novo artigo, inicio uma série que vai tentar desmistificar o funcionamento do poder judiciário no Brasil de um ponto de vista prático: o de um cidadão que decide entrar na justiça para reivindicar algum direito, ou que é convocado para tomar parte em algum tipo de julgamento, seja como testemunha ou como réu.

Começamos entendendo o conceito de litígio: é quando duas partes, discordam com relação a algum direito. Essas duas partes podem ser pessoas físicas ou jurídicas, podendo ainda ser um grupo de pessoas. Como exemplos:
  • Alfredo e Bernardo são vizinhos. Alfredo construiu um muro e Bernardo acha que o muro está dentro de seu terreno. Alfredo acha que não, acha que está dentro do seu.
  • Carros Bonitos Ltda., uma revendedora de veículos, contratou a empresa Diamante Serviços Automotivos Ltda. para realizar a lavagem e polimento de 30 veículos que adquirira em um leilão. Foi feita apenas a lavagem. Carros Bonitos reclama que Diamante deveria fazer o polimento; Diamante entende que polimento é um serviço à parte a que Carros Bonitos só terá direito se pagar um valor adicional a Diamante.

  • Estrela D'Alva Formaturas Ltda. foi contratada por quatrocentos formandos do curso de Direito para organizar a cerimônia de colação de grau e o baile de formatura. Os quatrocentos alunos escolheram a casa de shows e bailes "Festas Hall" para o baile. O baile, no entanto, foi realizado no "Gran Saloon". Os alunos desejam ressarcimento de parte do valor pago, pois entendem que a qualidade do baile foi inferior ao que haviam contratado; a empresa Estrela D'Alva entende que eles não têm direito a reembolso, pois o baile mudou de lugar por motivo de força maior (houve um incêndio no Festas Hall um mês antes do baile), sendo mantida a qualidade de serviço.

Em qualquer desses casos, percebemos um certo padrão: duas partes discordam com relação a algum direito. Isso faz com que um dos lados queira que o outro faça, deixe de fazer, ou entregue alguma coisa para o outro lado. Só que como o outro lado discorda, não vai agir da forma solicitada.

Em uma sociedade mais antiga ou menos evoluída, esses impasses eram resolvidos na forma mais intuitiva: no braço, na força, no "cada um por si". Bernardo tentaria derrubar o muro de Alfredo na marretada, Alfredo também usaria um porrete, mas em Bernardo, para impedi-lo de conseguir seu objetivo e para proteger o muro.

Essa situação, de se resolverem as questões na base da força (chamada pelos teóricos de auto-tutela), não é boa para a sociedade como um todo (seria bem difícil dormir à noite, pensando em todo mundo que discordaria de algum de seus direitos: liberdade, vida, propriedade, dignidade).

Assim, aceita-se na nossa sociedade que apenas uma entidade assuma o papel de solucionador de impasses em conflitos de direitos: o Estado. É claro que quando as duas partes concordam, não é necessário invocar o Estado ("Alfredo, seu muro está em cima do meu terreno"; "Opa, desculpe. Amanhã eu conserto").

Nos casos de litígio ("conflito de interesses com resistência", na definição formal), uma das partes decide solicitar ao Estado que decida qual dos dois tem a razão, e force a outra parte a cumprir tal decisão. Essas duas funções (decidir sobre direitos e forçar as pessoas a cumprir ordens) são restritas ao Estado e ninguém pode exercê-las exceto em nome do Estado (juízes, policiais, fiscais, etc.) ou em situações extremamente excepcionais (como no assassinato em legítima defesa).

Podemos, então, definir, de forma bastante informal, que processo judicial é a seqüência de ações e eventos que acontecem desde o momento em que uma das partes "leva a questão à Justiça" até o momento em que o Estado profere sua decisão sobre quem tem razão: se a parte que solicitou ao Estado que interferisse na questão (a chamada parte autora) ou se a outra parte (a parte).

Uma coisa que devemos ter em mente, portanto, é que ser réu em um processo não quer dizer, a princípio, nada. Qualquer pessoa, que viva numa sociedade com regras de Direito, está sujeita a ser ré em um processo, bastando para isso que outra parte chame o Estado para decidir sobre uma disputa.

Lembro de uma aula, no ano passado, em que perguntei a um professor o que ele achava sobre a questão do Supremo Tribunal Federal (STF) ter aceito a denúncia a respeito do "mensalão". A resposta dele, muito interessante, foi algo como: "Não vejo por que tanto esforço por parte dos acusados, que se dizem inocentes, de evitar o processo. Viver em sociedade te sujeita a ser acusado de qualquer coisa, e a única forma de se ter uma comprovação de inocência é ser acusado e absolvido em um processo. Senão só o que se tem é uma presunção de inocência".

Veja que no exemplo de Alfredo e Bernardo, Bernardo poderia levar a questão do muro à justiça, e Alfredo seria considerado o réu. Mas isso quer dizer que é necessariamente Bernardo quem tem razão?

Na vida real, no entanto, há um consenso popular que ser réu quer dizer ser suspeito e, se a pessoa foi ré muitas vezes, que deve ser porque "alguma coisa tem aí". Devemos lembrar sempre que esse tipo de raciocínio não deveria prevalecer; mas, por outro lado, muitos processos são concluídos não por exame do mérito (isto é, da questão de direito sendo discutida), mas por falhas no processo -- quebra de alguma das regras que os três participantes no processo (autor, réu e Estado) devem seguir para garantir que o resultado do processo seja uma decisão o mais justa possível.

Assim, é possível que alguém não seja obrigado a fazer, a deixar de fazer ou a entregar algo que deveria, simplesmente porque o processo não se desenrolou da forma correta. Se o processo é criminal -- a parte autora é o Ministério Público (MP), e o direito sendo discutido é, por exemplo, o direito do réu permanecer em liberdade --, pode muito bem ser que um criminoso não seja punido porque, digamos, o MP apresentou alguma prova obtida ilicitamente (escuta telefônica sem autorização judicial, por exemplo). Tais regras do processo são motivadas pelos direitos fundamentais do cidadão, como o direito a ser ouvido por um juiz, o direito de ampla defesa, etc. (o art. 5º da Constituição, nos incisos II, XII e LV entre outros, estão alguns dos direitos abordados aqui).

Com isso, concluo esta primeira introdução. No próximo artigo desta série, vou abordar os diversos termos que tanto confundem quem quer "entrar na justiça": comarca, vara, foro, etc.

Até lá.

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