terça-feira, 18 de março de 2008

Essa questão eu vou "levar pra justiça"

Olá novamente. Neste novo artigo, inicio uma série que vai tentar desmistificar o funcionamento do poder judiciário no Brasil de um ponto de vista prático: o de um cidadão que decide entrar na justiça para reivindicar algum direito, ou que é convocado para tomar parte em algum tipo de julgamento, seja como testemunha ou como réu.

Começamos entendendo o conceito de litígio: é quando duas partes, discordam com relação a algum direito. Essas duas partes podem ser pessoas físicas ou jurídicas, podendo ainda ser um grupo de pessoas. Como exemplos:
  • Alfredo e Bernardo são vizinhos. Alfredo construiu um muro e Bernardo acha que o muro está dentro de seu terreno. Alfredo acha que não, acha que está dentro do seu.
  • Carros Bonitos Ltda., uma revendedora de veículos, contratou a empresa Diamante Serviços Automotivos Ltda. para realizar a lavagem e polimento de 30 veículos que adquirira em um leilão. Foi feita apenas a lavagem. Carros Bonitos reclama que Diamante deveria fazer o polimento; Diamante entende que polimento é um serviço à parte a que Carros Bonitos só terá direito se pagar um valor adicional a Diamante.

  • Estrela D'Alva Formaturas Ltda. foi contratada por quatrocentos formandos do curso de Direito para organizar a cerimônia de colação de grau e o baile de formatura. Os quatrocentos alunos escolheram a casa de shows e bailes "Festas Hall" para o baile. O baile, no entanto, foi realizado no "Gran Saloon". Os alunos desejam ressarcimento de parte do valor pago, pois entendem que a qualidade do baile foi inferior ao que haviam contratado; a empresa Estrela D'Alva entende que eles não têm direito a reembolso, pois o baile mudou de lugar por motivo de força maior (houve um incêndio no Festas Hall um mês antes do baile), sendo mantida a qualidade de serviço.

Em qualquer desses casos, percebemos um certo padrão: duas partes discordam com relação a algum direito. Isso faz com que um dos lados queira que o outro faça, deixe de fazer, ou entregue alguma coisa para o outro lado. Só que como o outro lado discorda, não vai agir da forma solicitada.

Em uma sociedade mais antiga ou menos evoluída, esses impasses eram resolvidos na forma mais intuitiva: no braço, na força, no "cada um por si". Bernardo tentaria derrubar o muro de Alfredo na marretada, Alfredo também usaria um porrete, mas em Bernardo, para impedi-lo de conseguir seu objetivo e para proteger o muro.

Essa situação, de se resolverem as questões na base da força (chamada pelos teóricos de auto-tutela), não é boa para a sociedade como um todo (seria bem difícil dormir à noite, pensando em todo mundo que discordaria de algum de seus direitos: liberdade, vida, propriedade, dignidade).

Assim, aceita-se na nossa sociedade que apenas uma entidade assuma o papel de solucionador de impasses em conflitos de direitos: o Estado. É claro que quando as duas partes concordam, não é necessário invocar o Estado ("Alfredo, seu muro está em cima do meu terreno"; "Opa, desculpe. Amanhã eu conserto").

Nos casos de litígio ("conflito de interesses com resistência", na definição formal), uma das partes decide solicitar ao Estado que decida qual dos dois tem a razão, e force a outra parte a cumprir tal decisão. Essas duas funções (decidir sobre direitos e forçar as pessoas a cumprir ordens) são restritas ao Estado e ninguém pode exercê-las exceto em nome do Estado (juízes, policiais, fiscais, etc.) ou em situações extremamente excepcionais (como no assassinato em legítima defesa).

Podemos, então, definir, de forma bastante informal, que processo judicial é a seqüência de ações e eventos que acontecem desde o momento em que uma das partes "leva a questão à Justiça" até o momento em que o Estado profere sua decisão sobre quem tem razão: se a parte que solicitou ao Estado que interferisse na questão (a chamada parte autora) ou se a outra parte (a parte).

Uma coisa que devemos ter em mente, portanto, é que ser réu em um processo não quer dizer, a princípio, nada. Qualquer pessoa, que viva numa sociedade com regras de Direito, está sujeita a ser ré em um processo, bastando para isso que outra parte chame o Estado para decidir sobre uma disputa.

Lembro de uma aula, no ano passado, em que perguntei a um professor o que ele achava sobre a questão do Supremo Tribunal Federal (STF) ter aceito a denúncia a respeito do "mensalão". A resposta dele, muito interessante, foi algo como: "Não vejo por que tanto esforço por parte dos acusados, que se dizem inocentes, de evitar o processo. Viver em sociedade te sujeita a ser acusado de qualquer coisa, e a única forma de se ter uma comprovação de inocência é ser acusado e absolvido em um processo. Senão só o que se tem é uma presunção de inocência".

Veja que no exemplo de Alfredo e Bernardo, Bernardo poderia levar a questão do muro à justiça, e Alfredo seria considerado o réu. Mas isso quer dizer que é necessariamente Bernardo quem tem razão?

Na vida real, no entanto, há um consenso popular que ser réu quer dizer ser suspeito e, se a pessoa foi ré muitas vezes, que deve ser porque "alguma coisa tem aí". Devemos lembrar sempre que esse tipo de raciocínio não deveria prevalecer; mas, por outro lado, muitos processos são concluídos não por exame do mérito (isto é, da questão de direito sendo discutida), mas por falhas no processo -- quebra de alguma das regras que os três participantes no processo (autor, réu e Estado) devem seguir para garantir que o resultado do processo seja uma decisão o mais justa possível.

Assim, é possível que alguém não seja obrigado a fazer, a deixar de fazer ou a entregar algo que deveria, simplesmente porque o processo não se desenrolou da forma correta. Se o processo é criminal -- a parte autora é o Ministério Público (MP), e o direito sendo discutido é, por exemplo, o direito do réu permanecer em liberdade --, pode muito bem ser que um criminoso não seja punido porque, digamos, o MP apresentou alguma prova obtida ilicitamente (escuta telefônica sem autorização judicial, por exemplo). Tais regras do processo são motivadas pelos direitos fundamentais do cidadão, como o direito a ser ouvido por um juiz, o direito de ampla defesa, etc. (o art. 5º da Constituição, nos incisos II, XII e LV entre outros, estão alguns dos direitos abordados aqui).

Com isso, concluo esta primeira introdução. No próximo artigo desta série, vou abordar os diversos termos que tanto confundem quem quer "entrar na justiça": comarca, vara, foro, etc.

Até lá.

terça-feira, 11 de março de 2008

A legalidade dos super-heróis

É tarde da noite e uma garçonete anda pela rua escura, após o final do serviço no restaurante onde trabalha. Todas as noites ela vai a pé do trabalho até o terminal de ônibus, onde pega o último carro da linha que serve sua casa.

Naquela noite, o movimento mais intenso de clientes fez com que ela saísse mais tarde do restaurante, e isso a deixou muito preocupada: se perdesse o ônibus que normalmente tomava, seria obrigada a aguardar mais de meia hora pelo ônibus noturno. Por isso tomou uma decisão nem um pouco cautelosa: cortaria caminho por uma ruela mais escura e totalmente deserta.

Imaginou que, se apressasse o passo, conseguiria evitar algum perigo ou encontro indesejado, mas logo viu que estava errada: uma figura se apareceu a sua frente num ímpeto. Ela pôde perceber claramente o brilho sutil que imaginou ser de uma lâmina. A distância a que já se encontrava da rua principal não a permitiria escapar correndo. Seus olhos começaram a lacrimejar e ela tentou se preparar para a violência que considerou inevitável.

O que aconteceu a seguir foi muito rápido. Do alto, uma grande figura trajando preto, parecida com um morcego, desceu gargalhando na direção do criminoso e atacou numa fração de segundo. A moça ouviu um barulho que imaginou ser de ossos se partindo e decidiu, então, voltar correndo para a rua principal. A criatura negra continuava rindo enquanto atacava, e sua vítima gritava de dor a plenos pulmões. A garçonete teve apenas o impulso de voltar para o restaurante, para pedir apoio e conforto de algum colega que ainda não tivesse saído e, acima de tudo, para se afastar ao máximo daquela cena horrível.

Essa descrição poderia muito bem ser de alguma cena de alguma das revistas de histórias em quadrinhos que eu cresci lendo. Em uma sociedade com valores e instituições desgastadas, o cidadão "precisa" de heróis para fazer justiça. Mas será que o Batman, o Homem-Aranha ou qualquer outro herói existiria na vida real?

A resposta da minha pergunta começa analisando o Código Penal (Decreto-Lei nº 2.484, de 7 de dezembro de 1940). Em seu artigo 345, temos definido o crime de exercício arbitrário das próprias razões: "Fazer justiça pelas próprias mãos, para satisfazer pretensão, embora legítima, salvo quando a lei o permite".

Vamos começar olhando o final dessa definição: o fato só não é enquadrado nesse crime nos casos em que a lei permite. Por exemplo, a lei admite (no art. 23 do próprio C.P.) que não há crime se o agente pratica o fato em legítima defesa.

Num primeiro momento, isso poderia justificar as ações do homem-morcego do exemplo - ele estaria defendendo a garçonete -, mas vamos olhar a definição (no art. 25 do C.P.) de legítima defesa:
"Entende-se em legítima defesa quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem". No exemplo, após a moça ter sido salva, o "herói" continuou atacando o criminoso: a força empregada não foi moderada, e ele continuou atacando após a agressão iminente ter sido repelida.

Outro exemplo interessante: no filme "Homem-Aranha 2", temos a cena em que o herói desiste de usar seus poderes para combater o crime, e joga seu uniforme no lixo. Juridicamente, ele praticou a derelição de sua fantasia: jogou fora com a intenção de se desfazer dela. Com isso, o herói renunciou a seu direito de propriedade da fantasia. Um sujeito encontrou a roupa no lixo, tomou-a para si (efetivamente passou a ter a coisa como sua, já que a coisa juridicamente não tinha dono depois de ter sido abandonada) e vendeu-a para o editor do jornal que persegue o herói.

Algum tempo depois, Peter Parker se arrepende de ter se aposentado da carreira de herói; vai até a redação do jornal e se apodera da roupa novamente. Tecnicamente falando, ele cometeu um furto, que não era justificado pelas hipóteses de exclusão de ilicitude como legítima defesa, estado de necessidade ou estrito cumprimento de dever legal.

Em outras historinhas, temos diversos ilícitos praticados pelos heróis: lesão corporal, omissão de socorro (quando deixam um criminoso ferido abandonado), rixa, ameaça, violação de domicílio, violação de comunicação radioelétrica (estou pensando no caso em que o Super-Homem usa sua super-audição para ouvir a conversa daqueles que ele acha que são bandidos), furto, dano, apropriação indébita, incêndio, explosão, desabamento, charlatanismo, curandeirismo, formação de quadrilha (a suposta "liga da justiça" é formada para praticar atos que seriam juridicamente enquadrados como ilegais), falsa identidade (lembremos que a Constituição Federal veda o anonimato!), resistência, desobediência, desacato, etc...

A lista é bem grande. Em muitos casos, a ação do suposto herói é até justificada: defender alguém prestes a ser atacado, ou que se acredita que vai ser atacado, é legítima defesa, sim. Mas exagerar no uso da força, ou assumir um papel de agente da justiça sem a devida legitimação legal, é crime de exercício arbitrário das próprias razões (lembre-se: não existe legítima defesa de si ou de outra pessoa a não ser que a agressão seja iminente, ou seja, que esteja para acontecer a qualquer instante).

A lógica por trás desse crime me parece razoável: o Direito moderno veda a auto-tutela, ou seja, que as pessoas resolvam os conflitos por sua própria conta, a vingança pessoal, etc. Tanto porque não se aceita que alguém decida sobre os direitos de outra pessoa arbitrariamente, sem a apreciação de diversos pontos de vista (contraditórios), como também porque é necessário algum nível de organização na execução desses atos de justiça - seria o caos se cada um decidisse por si só como a justiça deveria ser feita.

O que não quer dizer que o Direito é contra a existência de heróis. Heróis são aqueles que não se escondem covardemente por trás de máscaras, fugindo da responsabilidade por seus atos, não enfrentam adversários com habilidades muito menores que as suas - muito pelo contrário, atualmente, na vida real, os bandidos são os que têm as melhores armas. Heróis só agem usando força moderada, para defender bens jurídicos gravemente ameaçados (como a vida de outra pessoa). Heróis só quebram a lei quando é necessário e justificado pela própria lei, e não por sua própria convicção pessoal. E os maiores heróis dentre esses são aqueles que fazem tudo isso sem usar a violência.

O que também não quer dizer que eu não goste dessas histórias em quadrinhos ou que não me empolgue com as acrobacias dos filmes. O mais interessante, na minha opinião, é o caso do Batman. Não faço apologia ao vigilante mascarado e, se ele existisse de fato, seria o caso de ser perseguido com toda a força da lei. Mas como um exercício filosófico o Batman é um personagem bem interessante e, até certo ponto, coerente. Vejamos:

O garoto Bruce Wayne teve seus pais assassinados em sua frente por bandidos. Isso deve ter provocado algum trauma que o levou a esse comportamento claramente dividido (o vigilante violento versus o playboy molenga). Ele assume, como vigilante, que se encontra à margem da lei, do estado de direito constituído. Ele não respeita as instituições constituídas, tanto que enfrenta igualmente policiais e bandidos.

Seus limites de ação são impostos por sua própria moral, não sendo validados por leis formalmente aprovadas (utiliza-se delas, no entanto, no exercício de suas atividades como industrial para financiar sua cruzada noturna, o que é uma certa incoerência mas condizente com sua personalidade esquizofrênica). Até certo ponto, estamos vendo um ensaio de uma situação de revolução, mas executada a partir de uma só pessoa. A questão interessante (e que até onde me lembro nunca foi abordada nos gibis) é o que aconteceria quando outros (além do Robin, evidentemente) decidissem se alinhar à proposta de sociedade e justiça do Batman. Será que ele aceitaria tais pessoas? Será que seu modelo de sociedade se sustentaria? Sobre o Batman há ainda as questões psicológicas de projeção (eu acho que os vilões que ele enfrentam são projeções dele mesmo) e toda a questão sexual com o Robin, mas esse é um blog jurídico e não psiquiátrico.

Enfim, esses personagens são interessantes apenas como alegorias, nunca como modelos. E vale a pena ressaltar, também, que minha análise levou em conta as leis brasileiras, e não as americanas, de onde eles vivem. Será que é por isso que lá tem tanto super-herói e aqui não tem nenhum? Deixe um comentário com sua opinião!

Até a próxima!

terça-feira, 4 de março de 2008

Nome de solteiro, de casado, de divorciado

Olá! Apesar de ainda não ter conseguido cumprir meu próprio cronograma (um post a cada quatro dias), volto com mais um artigo, torcendo para que o processo de autoria/edição/publicação do Direito Diário vá se normalizando. Aproveito para comunicar que criei uma newsletter para divulgar as atualizações do blog. Caso queira se inscrever, envie e-mail para direitodiario-subscribe@yahoogrupos.com.br. Também vale lembrar que o e-mail será enviado pelo endereço direitodiario@yahoogrupos.com.br; talvez você precise configurar seu programa de e-mails para não bloquear a newsletter. Vamos, então, ao assunto de hoje: casamento e nomes. Ressalto que todos os nomes escolhidos aqui são fictícios, não havendo senão coincidência eventual com pessoas reais.

Já é uma tradição antiga que, quando duas pessoas se casam, a mulher assuma o sobrenome do marido. As tradições variam muito de lugar para lugar, mas normalmente a mulher acrescenta o nome de família do pai de seu marido ao final do seu nome. Com a evolução da sociedade, e um novo papel da mulher, essa tradição deixou de ser considerada obrigatória (inclusive na lei), sendo muitos os casos em que ambos os cônjuges mantêm seus nomes depois de casados. Com o novo Código Civil (Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002), passou-se a aceitar outra possibilidade ainda: a do homem acrescentar o sobrenome da mulher, conforme o art. 1.565, §1º. Tenho visto vários casos em que isso acontece ou aconteceu (inclusive meu caso foi assim). Muitos já ouviram falar de casos de homens que assumem o nome de família da mulher, ou noivas que adotam o sobrenome da sogra e não do sogro, por ser uma família mais conhecida ou tradicional.

Quanto às crianças, no Brasil, nossa tradição é de batizá-las com o nome de família do pai no fim. José da Silva Santos, por exemplo; a família do pai do José é a família Santos, e a família da mãe dele é a família da Silva. A lei de registros públicos (Lei nº. 6.015, de 31 de dezembro de 1973) estabelece como regra apenas que o declarante do nascimento deve indicar o nome da criança e, se não declarar um nome completo, o oficial de registro deverá acrescentar o sobrenome do pai ou da mãe.

Todas essas regras (tradições ou leis) têm por objetivo facilitar a identificação das pessoas pelo nome. Antonia Andrade Almeida, por exemplo; sabemos que ela não é a Antonia Bernardes, filha de Carlos Bernardes. Mas é a Antonia filha do Sr. Almeida e da Sra. Andrade, ou é a filha do Sr. Andrade que casou depois com o Sr. Almeida, ou ...?

A história fica mais complicada quando o casal se separa; em alguns casos, por exemplo, o ex-marido (Fábio Gomes Horta) está registrado como tendo o nome da ex-mulher (Isabel Horta). Talvez ele não queira manter o nome, se a separação não foi amigável, por exemplo. Ele é obrigado a mantê-lo ou pode voltar a usar o nome de solteiro (Fábio Gomes)?

Outro exemplo: Antonia Bernardes adotou o nome do marido, Carlos Dias, com o casamento, passando a se chamar Antonia Bernardes Dias. Teve um filho com ele, que batizaram com o nome Eduardo Dias. Se houver separação, Antonia pode continuar a se chamar Bernardes Dias, para que ela e o filho mantenham o mesmo sobrenome? Mas suponha que Carlos Dias seja um grande político, artista ou playboy, e não queira que Antonia seja associada a seu nome depois da separação (talvez tenha havido um flagrante de adultério, por exemplo, gerando publicidade negativa a Carlos). Carlos pode exigir que Antonia volte a se chamar apenas Antonia Bernardes, mesmo com a questão do filho?

O Código Civil resolve algumas dessas questões. O art. 1571, §2º, estabelece que no divórcio direto consensual (quando houve separação "na prática" por mais de dois anos, e mediante pedido dos cônjuges de forma amigável) é permitida a utilização do nome de casado/casada, caso seja decidida por cada um dos (ex-) cônjuges.

O mesmo parágrafo estabelece que no divórcio que se originou da conversão de separação judicial (ou seja, quando os cônjuges pedem primeiro a separação judicial para o juiz, e depois de um ano pedem para que essa separação se converta em divórcio), há a opção por usar o nome de casado somente se a sentença da separação judicial não indicar o contrário. Isso acontece normalmente em separações não-amigáveis.

Já o artigo 1.578 aborda especificamente esse caso (separação não-amigável):

Art. 1.578. O cônjuge declarado culpado na ação de separação judicial perde o direito de usar o sobrenome do outro, desde que expressamente requerido pelo cônjuge inocente e se a alteração não acarretar:

I - evidente prejuízo para a sua identificação;
II - manifesta distinção entre o seu nome de família e o dos filhos havidos da união dissolvida;
III - dano grave reconhecido na decisão judicial.
§ 1º O cônjuge inocente na ação de separação judicial poderá renunciar, a qualquer momento, ao direito de usar o sobrenome do outro.
§ 2º Nos demais casos, caberá a opção pela conservação do nome de casado.

Ou seja, se houver separação "com briga", aquele que "tem razão", na decisão do juiz, tem a opção de manter ou não o nome de casado (§1º).

Aquele que "não tem razão" (por ter cometido adultério ou abandonado o lar, por exemplo), não tem opção, ficando sujeito à vontade do cônjuge inocente: se for requerido por este, o culpado da separação é obrigado a deixar de usar o nome de casado.

Também se ressalta que não há situação que obrigue ninguém a continuar usando o nome de casado; isso é um direito que pode ou não ser perdido.

Com base nessas informações, creio que já é possível analisar os casos de Fábio Gomes Horta e Antonia Bernardes Dias. Qual é a sua opinião sobre os dois casos? Use a ferramenta de comentários deste blog para colocar sua resposta.

Até a próxima!

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2008

O preço do presentinho na bagagem


Olá a todos. Em primeiro lugar, peço desculpas pelo grande tempo entre as atualizações... O Direito Diário também tirou férias. Isso foi devido ao fim de ano tanto no trabalho como na faculdade. Com a volta às aulas e um novo planejamento, pretendo realizar atualizações a cada quatro dias. Vamos torcer para isso dar certo!


Aproveito, então, esse pretexto das férias para falar neste post sobre um assunto que muita gente me pergunta: a questão das mercadorias que a gente traz do exterior quando viaja. Vou me ater à questão da bagagem acompanhada, que é aquela que vem com você no avião (mesmo que despachada), diferente da bagagem desacompanhada, que, de uma forma simplificada, é aquela que você manda por remessa ou encomenda, em separado da sua viagem.


Chamamos de importação a entrada de mercadoria estrangeira no território brasileiro. Por estrangeira, entende-se tanto a mercadoria fabricada no exterior, como a brasileira que tenha saído do Brasil pelo processo inverso de exportação e que esteja retornando. Pode parecer simples essa regra, mas ela é cheia de exceções. Por exemplo, se a mercadoria é brasileira, foi exportada mas está sendo devolvida por defeito de fabricação, ela não é considerada estrangeira quando entra de novo no Brasil e, portanto, isso não é tratado como importação.


Mas no nosso caso, interessa simplesmente a bagagem de um viajante. E essa não constitui exceção: se você trouxer qualquer quantidade de mercadorias do exterior, que seja um único pirulito, lolipop, Lutscher ou sucette, será sempre considerada mercadoria estrangeira. E, de acordo com o Regulamento Aduaneiro (Decreto 4.543, de 26 de dezembro de 2002), no art. 69, "o imposto de importação incide sobre a mercadoria estrangeira... inclusive sobre bagagem de viajante".


Também no RA, art. 72, "o fato gerador do imposto de importação é a entrada de mercadoria estrangeira no território aduaneiro". Ou seja, no momento em que a mercadoria estrangeira entra no Brasil, o imposto passa a ser devido.


Agora vem a parte boa: à bagagem de viajante é concedido um limite de isenção de imposto, a popular "cota", cujo valor varia de acordo com o meio de transporte do viajante. Para quem chega ao Brasil pelo ar ou pelo mar, o limite é de 500 dólares, mas para quem chega por terra, rio ou lago, o limite é de 300 dólares.


Cabe ressaltar que o termo "cota" muitas vezes é empregado de forma errada: "cota de importação" é errado, seria correto se você fosse proibido de trazer mais do que um determinado valor, sendo obrigado a deixar as mercardorias que excedessem na entrada do país. O nome correto da cota é cota de isenção de imposto de importação.


No caso, e aqui é a segunda parte (relativamente) boa: se você trouxer mais do que 500 dólares (ou 300, conforme o caso) em mercadorias, os primeiros 500 dólares são isentos de imposto, e sobre o restante incide apenas o imposto de importação, à alíquota de 50%.


Essa cota de isenção se refere a mercadorias em geral (os presentinhos para a família caem nesse grupo). São isentos também, independentemente do valor, e contados "por fora" do limite de isenção, livros, revistas, jornais, roupas e materiais de consumo próprios do viajante (ou seja, não adianta a tia tentar dizer que aquele par sapatos sociais masculinos tamanho 44 são dela!).


Outra coisa interessante é que, além desse limite de 500 dólares, também são isentos mais 500 dólares que forem gastos no free-shop (ou duty-free ou loja franca) apenas na entrada do país. Ou seja, se você comprar 300 dólares nos EUA, e na chegada ao Brasil comprar mais 500 dólares no free-shop, não deve nada de imposto. Mas se comprar 500 dólares no free-shop ao sair do Brasil, e mais 300 nos EUA, todos esses 800 dólares contam na cota de bagagem e, portanto, você deverá pagar 50% sobre o excedente (800 - 500 = 300, e portanto o imposto é de 150 dólares).


Em adição a isso, é importante salientar que não é qualquer coisa que é entendida como bagagem, mesmo que venha dentro da mala ou no avião com a pessoa. A principal exclusão do conceito é de mercadorias para revenda ou industrialização. Uma peça de um torno industrial não é bagagem, como também não é bagagem uma mala com quinhentos pares de meia.


Finalmente, vale destacar que existem mercadorias que não podem ser trazidas para o Brasil em hipótese alguma, e outras que podem ser trazidas somente mediante autorização. Entre os exemplos:



  • Produtos piratas ou contrafeitos (tênis Nike falsificado ou CD com Windows pirateado, por exemplo)

  • Armas ou réplicas (mesmo de brinquedo, precisam de autorização do Exército)

  • Animais (precisam de autorização do Ministério do Meio Ambiente ou do Ibama)

  • Cigarros de marca que não seja comercializada no país de origem

  • Cigarros ou bebidas brasileiras destinados ao consumo no exterior

Uma ressalva que alguém poderia fazer é que o fato de se pagar 50% de imposto de importação não é um ponto positivo, mas negativo. A idéia do legislador é criar um mecanismo pelo qual a importação fica mais simples e menos burocrática, mas mais cara, para desestimular a adoção desse mecanismo, que tem menos controle.


É porque a alternativa é você fazer o chamado despacho de importação, que é um procedimento mais complicado (e possivelmente mais caro, se você precisar de um despachante para isso!), para trazer a mercadoria para o Brasil. No despacho aduaneiro geral, na mercadoria incide II (imposto de importação), IPI, ICMS, PIS e COFINS, e esses impostos incidem sobre o valor da mercadoria mais o frete e seguro, se houver. O IPI, II e ICMS têm alíquotas que dependem do tipo de mercadoria, por isso pode ser menor o valor total do imposto.


Para quadros com pinturas artísticas, por exemplo, a alíquota total (somando todos os impostos, considerando ICMS de 18%) no despacho normal de importação é de 31,25%, o que é vantagem com relação ao tratamento simplificado de bagagem. Mas para lixos municipais (sim, você paga impostos se quiser importar lixo - mas não se esqueça de pedir autorizações da ANVISA e de outros órgãos competentes), a alíquota total é de cerca de 44,74%.


Assim, a conclusão é que, na maioria dos casos, o viajante não paga nada para trazer presentinhos para a família, ou paga pouco (supondo que nesses casos, os presentinhos vão totalizar no máximo 500 dólares no exterior e 500 dólares no free-shop de entrada). Ao valor excedente corresponde imposto simplificado de 50% - ou seja, só precisa pagar esse imposto e mais nada!


Lembro também que é obrigação do viajante declarar à aduana caso suas mercadorias totalizem mais do que a cota de isenção. Assim, se você trouxer mais que 500 dólares em via aérea, deve escolher, ao entrar no Brasil, a fila "bens a declarar" (nessa fila, as autoridades irão orientar sobre como pagar o imposto). A outra fila, "nada a declarar", corresponde às pessoas que estão trazendo menos do que 500 dólares. É claro que se uma pessoa entrar com, digamos, 700 dólares e quiser sonegar o imposto de importação (que, no caso, seria de 100 dólares), ela vai pegar a fila "nada a declarar".


É por isso que a Receita Federal seleciona algumas pessoas da fila "nada a declarar" para serem objeto de fiscalização: quem é selecionado recebe a famosa "luz vermelha" e os demais, a também famosa "luz verde". Se a pessoa for pega declarando incorretamente ou deixando de declarar(seja por má-fé ou por distração), deve pagar, além do imposto, uma multa de igual valor (no nosso exemplo, o sujeito pagaria outros 100 dólares de multa).


Acredito que isso gere a confusão comum de que "o imposto de importação para bagagem é de 100%". Com o que vimos acima, já sabemos que o imposto (sempre sobre o que exceder a cota de isenção) é de 50%; os outros 50% são multa por declaração incorreta ou por não-declaração.


Reforço que se você passa com mercadorias pelas quais deveria pagar imposto pela fila "nada a declarar", e não for selecionado para fiscalização pela Receita Federal, isso não quer dizer que o imposto foi perdoado: quer dizer que você sonegou imposto e não foi descoberto. A mercadoria é tão ilegal quanto aquelas que chegam por caminhos escusos.


E a entrada no país não é uma grande barreira que, transposta, indica que seus problemas acabaram: é possível que você seja abordado por um fiscal em um bloqueio em estrada, por exemplo, e se para aquele notebook de 800 dólares que seu amigo trouxe de Miami você não tiver nota fiscal, nem comprovante de pagamento de imposto de importação, pode acontecer inclusive de você perder a mercadoria.


Espero ter sido claro neste texto, mas fique à vontade para postar comentários no blog inclusive com dúvidas que ainda tenham ficado, ou com sua opinião a respeito deste texto. Um abraço e até a próxima!

quarta-feira, 7 de novembro de 2007

A pirataria e o direito autoral - parte I

A questão da pirataria é hoje um dos grandes temas do Direito nacional e internacional. A discussão envolve argumentos inflamados. De um lado, os que atacam o abuso do poder econômico por parte de gravadoras e distribuidoras de software, livros, filmes e obras musicais, em detrimento dos autores e artistas. Do outro, os que atacam o desrespeito às leis, prejuízo do direito autoral, financiamento do crime e sonegação fiscal. E, no meio desses, os que levantam o argumento da dificuldade de impor sanções aos milhões de internautas que baixam músicas e filmes pela Internet, os milhões de estudantes que fazem fotocópias de livros inteiros, camelôs que vendem CDs e DVDs, quermesses que tocam músicas sem pagar direitos, etc.

Meu objetivo aqui será iniciar uma série de posts sobre o assunto, que é (como tantos outros no Direito) extenso demais para ser resumido em poucos parágrafos.

Inicialmente, quero apresentar as duas leis que falam do assunto, a lei 9.609 e a lei 9.610, ambas de 19 de fevereiro de 1998. A lei 9.610 "altera, atualiza e consolida a legislação sobre direitos autorais e dá outras providências". Já a 9.609 "dispõe sobre a proteção da propriedade intelectual de programa de computador, sua comercialização no País, e dá outras providências". Para facilitar, chamarei aqui a lei 9.609 de lei do software e a lei 9.610 de lei do direito autoral.

Em outras palavras, uma é a lei que protege os direitos autorais e regula a proteção dos mesmos, para obras em geral (textos de obras literárias, conferências, obras dramáticas, coreografias, música, ilustração, etc., etc. - a lista é extensa e é detalhada no art 7º da lei 9.610), enquanto a outra apresenta as especificidades da proteção da propriedade intelectual do software. Cabe salientar que a lei do software deixa claro que a lei do direito autoral também se aplica ao software, exceto nos pontos em que a própria lei do software menciona proteção diferenciada.

Além dessas leis, também é importante mencionar o próprio Código Penal (Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro 1940). O mais importante do CP, com relação ao direito autoral, é o art. 184, que tipifica o crime de violação do direito autoral.

Vale lembrar que o Direito não se forma a partir, simplesmente, do conjunto de leis; além das leis existirem, as mesmas precisam ter validade, vigência, eficácia e vigor, para serem "vivas", ou seja, para efetivamente prescreverem o comportamento da sociedade. Leis "que não pegam" são um problema indesejável mas existente. Leis que são inconsistentes, omissas, ambíguas ou incoerentes precisam ser interpretadas quando os juízes forem proferir sentenças.

Nesse sentido, os julgados (ou jurisprudência), apesar de não servirem como "justificativas" para as decisões dos juízes (o termo técnico para essas justificativas das decisões é fontes do direito), podem ser usados para inspirar os juízes e advogados para criarem seus argumentos.

Para o caso do direito autoral, apesar das leis serem bastante complexas e detalhadas, existem pontos que permitem interpretações diversas. Ainda não há muita jurisprudência sobre o assunto, por isso podemos ter a expectativa de que a "tendência" de como as questões de direitos autorais serão interpretadas, tanto com relação à questão criminal como com relação à questão de indenização ainda será formada.

Também entre os doutrinadores (estudiosos do Direito) ainda não há consenso sobre várias questões relativas a direito autoral. Vai ser uma discussão muito interessante que deve durar vários anos ainda.

Como disse, o assunto é extenso e vai se estender por vários posts. Nos próximos, tentarei abordar algumas questões específicas, como por exemplo, como a lei vê o download ou como fica a questão de cópias xerográficas de livros. Aproveite e use os comentários para colocar questões que você desejar ver por aqui.

Aproveito para pedir desculpas pela ausência na última semana... Mês de novembro é fogo, com trabalhos, provas e tudo mais na faculdade.


Agradeço a Rafael Dourado pela ilustração.

terça-feira, 30 de outubro de 2007

Constituição: manual do usuário

Quando a gente é criança, na escola aprende que a Constituição é a "lei máxima" do país, ou que é a "lei das leis" ou coisa assim. Mas a real extensão da influência dela em nossas vidas é muitas vezes desconhecida. Mais uma vez, é reflexo do péssimo sistema educacional brasileiro, que privilegia conhecimentos totalmente desconexos da realidade do cidadão - que podem até ter sua importância - em detrimento de conceitos básicos de cidadania, direitos, deveres. Pessoalmente penso que o currículo escolar brasileiro deveria ter disciplinas de direito, organização do estado, filosofia e consciência ambiental.

Mas voltemos ao tema deste post: a Constituição. A nossa, que foi escrita "originalmente" em 1988 e "modificada" várias vezes desde então, estabelece as bases de funcionamento do Estado brasileiro (por Estado, com maiúscula, entenda a "máquina do governo"). É a Constituição que estabelece como o Estado brasileiro está organizado (numa federação, ou seja, um conjunto de estados federados: São Paulo, Acre, etc.), como os poderes do Estado estão divididos (poder legislativo para o Congresso Nacional e seus congêneres nos estados federados e municípios, poder executivo para o Presidente, Governadores e Prefeitos, poder judiciário para os tribunais e juízes, poder de reforma da Constituição, etc.).

Uma coisa importante de ser marcada na Constituição é que ela também estabelece os direitos fundamentais do cidadão. Por exemplo, no art. 5º (que, aliás, tem a reputação de ser o "mais longo artigo constitucional do mundo"), estão estabelecidos diversos direitos fundamentais como: igualdade de direitos e obrigações entre homens e mulheres, livre manifestação do pensamento, proibição da tortura, direito de acesso à informação, direito de propriedade, etc... Não daria para me estender muito aqui já que nesse artigo 5º existem 78 incisos e 4 parágrafos.

A Constituição também estabelece o processo legislativo, ou seja, as regras que devem ser atendidas para que outras leis sejam criadas, as regras de cidadania, direitos sociais, direitos políticos, organização dos partidos políticos, competências legislativas dos diversos entes da federação.

Na maioria dos estados constitucionais (que possuem uma constituição), ela é criada com o intuito de evitar a concentração de poderes em uma única figura ou instituição, e também de dar meios jurídicos de um cidadão se defender contra o estado.

Um conceito que parece ser natural, mas na verdade foi estabelecido nos EUA início do séc. XIX quase que acidentalmente foi o de que a Constituição é a lei maior, no sentido de que, se uma outra lei ou ato do governo for conflitante com a Constituição, esta é a que vale.

Isso tem grande importância na vida das pessoas: se alguém (o governo, por exemplo) faz algo contra você que prejudique algum de seus direitos garantidos pela Constituição, você pode alegar a inconstitucionalidade da lei ou medida que baseou o ato da outra parte. Isso dá segurança jurídica à sociedade, pois evita, por exemplo, que uma prefeitura, um governo estadual ou o governo federal saia emitindo medidas arbitrárias, contrárias aos direitos fundamentais garantidos pela Constituição. Existem várias formas por que se pode contestar a constitucionalidade de uma medida governamental, lei ou decisão judicial, como os recursos extraordinários, ações diretas de inconstitucionalidade, etc. Pretendo falar mais sobre eles no futuro.

Algumas curiosidades sobre a Constituição que nem todo mundo conhece:

  • Art 5º, inciso XI: ninguém pode entrar na sua casa (mesmo sendo você inquilino ou posseiro), à noite, exceto nos casos de "flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro". Isso inclui a própria polícia, mesmo com ordem judicial. É claro que, se algum policial quiser entrar na sua casa com objetivos excusos, vai usar algum argumento como o volume da música que você está ouvido, alegando o delito de romper alguma lei municipal do silêncio.
  • Art 5º, inciso XLVII: não haverá penas de morte em tempo de paz, perpétuas, de banimento, de trabalhos forçados ou cruéis. Pelo menos na lei; na prática, as condições carcerárias são desumanas e, portanto, cruéis e por isso inadmissíveis frente à Constituição.
  • Art 5º, inciso LXVII: ninguém pode ser preso por dívidas, exceto por não pagar pensão alimentícia ou por ser depositário infiel (definido, de uma forma simplificada, como aquele a quem se confia a guarda de alguma coisa e não a restitui quando solicitado legalmente);
  • Art 5º, inciso LXXVI: para os pobres, as certidões de nascimento e de óbito devem ser gratuitas.
  • Art 7º: esse artigo define uma série de direitos do trabalhador, como hora-extra maior que a hora de trabalho normal. Há uma conversa toda para se revogar ou flexibilizar a CLT, o que não vai adiantar nada se não houver também um Emenda Constitucional para alterar o art. 7º!
  • Art 13: a língua portuguesa é a língua oficial do Brasil, não o "miguxês" da internet, nem a montanha de termos e citações em inglês das multinacionais e, principalmente, nem o latim que os juristas e às vezes até juízes teimam em incluir em seus pareceres e sentenças, para parecerem mais inteligentes do que são;
  • Art 22, XXVI: compete à União legislar sobre "atividades nucleares de qualquer natureza"... Isso inclui banhos em estâncias de águas radiativas? Parece que tiveram preguiça de especificar "atividades relativas à exploração de equipamentos e processos que utilizam ou exploram a energia proveniente das reações nucleares de materiais radiativos", ou algo parecido;
  • Art. 229: "Os pais têm o dever de assistir, criar e educar os filhos menores, e os filhos maiores têm o dever de ajudar e amparar os pais na velhice, carência ou enfermidade." - Ou seja, é inconstitucional largar os pais idosos por aí, pobres ou enfermos. Acho um absurdo imaginar que isso precisa estar na lei; mas isso garante que não possam existir leis infra-constitucionais (leis abaixo da Constituição) que contrariem esse importante princípio moral.

Para terminar, um comentário sobre a aplicação dessas regras: uma vez estava conversando com uma amiga sobre essas questões de violência do estado, direitos básicos e etc. Ela ficava muito nervosa quando eu ia mencionando os direitos básicos do cidadão, dizendo algo como: "Que Constituição fantasiosa! Se a Constituição é assim, por que existem crianças com fome, miséria, crimes do colarinho branco, etc. e todos os problemas que conhecemos?"

Porque a Constituição não é a sociedade: ela é a lei que diz como as coisas devem ser, e não como elas são. É um instrumento importante que impede que a opressão seja institucionalizada, que a própria lei legitime os desmandos do governo. É importante que o cidadão saiba que, se há idosos morrendo de frio, se há crianças sofrendo abusos, se há tortura e crueldade por parte do poder público, que isso é ilegal e pode ser combatido na esfera judicial.

Mas, acima de tudo, é importante que as pessoas tenham conhecimento de tais regras, e que tenham a consciência que a Constituição não é a solução dos problemas do país, mas um caminho pelo qual a própria sociedade deve ativamente cobrar posicionamento dos seus representantes para manter as regras gravadas na também chamada Lei Maior. Isso quer dizer que cada um de nós tem a obrigação de ser um "vigia constitucional" do poder público.

Somos responsáveis por nossa omissão. A liberdade é nosso direito, mas tem preço sim. Nas belas palavras de Thomas Jefferson, "O preço da liberdade é a eterna vigilância".

quinta-feira, 25 de outubro de 2007

"Perdi todos meus primos de primeiro grau..."

- Nossa! O que aconteceu? Desastre?

- Muito pelo contrário: finalmente aprendi direito esse negócio de primeiro e segundo graus...

O diálogo acima é fictício, mas muito importante para ilustrar uma questão que a maioria das pessoas trata de forma imprecisa: o grau de parentesco legal.

Em primeiro lugar, é importante distinguir dois tipos de parentes: os parentes naturais (ou, popularmente, os "parentes de sangue"), e os parentes civis, ou seja, aqueles de quem somos parentes por outros tipos de laços (normalmente por casamento ou adoção).

Para efeitos legais, o grau de parentesco é a medida de "quão próximo/longe é o parentesco", atribuindo um grau de parentesco alto a um parente mais distante. Nessa perspectiva, podemos intuir que, como a relação de paternidade/maternidade é a relação de parentesco mais próxima que se pode ter, ela deve ter o menor grau. Realmente, pais e filhos são parentes de primeiro grau.

Por indução, podemos entender, então, que avós e netos têm grau de parentesco 2: um grau entre o filho e o pai e outro grau entre o pai e o avô. O que me faz lembrar daquele ditado "vó é mãe duas vezes". Ah, essa sabedoria popular.

Continuando, temos, então, o conceito de que o grau de parentesco entre ascendentes/descendentes (também chamados de parentes em linha reta) é dado através da contagem do número de gerações que separam as pessoas em questão: bisavô é parente de terceiro grau, abneto ou trineto é parente de quarto grau, tataraneto é parente em quinto grau, etc.

Um parêntese: talvez valha lembrar a seqüência de parentesco em linha reta na língua portuguesa: pai - avô - bisavô - abávio, ábavo ou trisavô - tataravô ou tetravô.

Agora precisamos entender o parentesco chamado colateral: são os irmãos, tios, primos, etc., que são parentes mas não em linha reta. Para calcular o grau de parentesco entre eles, podemos observar o que diz o art. 1594 do Código Civil de 2002: "Contam-se, na linha reta, os graus de parentesco pelo número de gerações, e, na colateral, também pelo número delas, subindo de um dos parentes até ao ascendente comum, e descendo até encontrar o outro parente."

Ou seja, se pensarmos no primo, filho do irmão do meu pai, chamado popularmente de primeiro grau, devemos subir até o ancestral comum (o avô, por exemplo), e contar o número de passos de mim até o vovô, e depois descer do vovô até meu primo. Teremos a seguinte contagem: papai - vovô - titio - meu primo. Assim, eu e meu primo somos parentes de quarto grau. Isso explica porque aquele que entendeu a regra sai por aí assustando as pessoas dizendo que perdeu todos os primos de primeiro grau: na verdade, nunca os teve.

Vale ressaltar que a lei só reconhece o parentesco colateral até quarto grau. Assim, para fins jurídicos, você não tem nada a ver com o filho de seu primo, ou o filho do primo de seu pai (popularmente chamados de primos de segundo e terceiro graus), que são, legalmente, parentes de quinto e sexto graus.

Essas regras valem para os parentes naturais. E os parentes civis?

O caso mais fácil é o da adoção: de acordo com o CC, art. 1596, os filhos adotivos e os filhos biológicos devem ser tratados da mesma forma, tendo os mesmos direitos. Assim, valem as mesmas regras acima, independentemente de o filho ser natural ou adotivo.

Quanto ao casamento, entende-se que ele cria vínculos de parentesco com relação a ascendentes, descendentes e irmãos do cônjuge ou companheiro (cf. CC art. 1594, §1) . Assim, você é parente por afinidade de seus cunhados e dos ascendentes e descendentes de seu cônjuge (o que quer dizer que pode, sim, chamar de "vovó" a mãe da sua sogra). Mas não há previsão na lei para a "dupla afinidade". Ou seja, não são parentes os concunhados, as consogras, etc.

Um último detalhe interessante sobre o parentesco por afinidade: ele se extingue entre os irmãos, mas não na linha reta com o fim do casamento ou da união estável. Ou seja, quando você se divorcia, ganha uma ex-mulher e um ex-cunhado, mas sua sogra será sempre sua sogra!

Na vida prática, já começa a ser relevante esse conhecimento: por exemplo num daqueles "concursos culturais", se o regulamento disser que não podem participar parentes até o terceiro grau de funcionários do patrocinador, e quem trabalha lá é a esposa do seu cunhado, manda bala: ela não é sua parente (é parente da sua esposa, porém).

O parentesco também interfere em pedidos de alimentos, e impedimento para o casamento (não se pode casar com ex-sogra, por exemplo, já que ela é considerada como sua parente por afinidade de primeiro grau).

Para terminar, um exercício: a imagem abaixo representa uma árvore genealógica: linhas verticais significam ascendência e linhas horizontais significam casamentos (se a imagem estiver difícil de ler, clique nela para abrir numa nova janela). Olhando a imagem, responda às perguntas:


  • Qual o grau de parentesco entre Antonio e Fábio?
  • Qual o grau de parentesco entre Helô e Ivete?
  • Cecília e Elisa são parentes por afinidade?
  • Gustavo e Fábio são parentes por afinidade?
  • Qual o grau de parentesco entre Jair e Gustavo?
  • Ao se separar de Daniel, Cecília poderia se casar com Jair?
  • E se ele também se separar de Ivete, Cecília poderia, então se casar com ele?
Divirta-se com as perguntas e responda-as nos comentários deste post para que possamos discuti-las.

Um abraço!