terça-feira, 30 de outubro de 2007

Constituição: manual do usuário

Quando a gente é criança, na escola aprende que a Constituição é a "lei máxima" do país, ou que é a "lei das leis" ou coisa assim. Mas a real extensão da influência dela em nossas vidas é muitas vezes desconhecida. Mais uma vez, é reflexo do péssimo sistema educacional brasileiro, que privilegia conhecimentos totalmente desconexos da realidade do cidadão - que podem até ter sua importância - em detrimento de conceitos básicos de cidadania, direitos, deveres. Pessoalmente penso que o currículo escolar brasileiro deveria ter disciplinas de direito, organização do estado, filosofia e consciência ambiental.

Mas voltemos ao tema deste post: a Constituição. A nossa, que foi escrita "originalmente" em 1988 e "modificada" várias vezes desde então, estabelece as bases de funcionamento do Estado brasileiro (por Estado, com maiúscula, entenda a "máquina do governo"). É a Constituição que estabelece como o Estado brasileiro está organizado (numa federação, ou seja, um conjunto de estados federados: São Paulo, Acre, etc.), como os poderes do Estado estão divididos (poder legislativo para o Congresso Nacional e seus congêneres nos estados federados e municípios, poder executivo para o Presidente, Governadores e Prefeitos, poder judiciário para os tribunais e juízes, poder de reforma da Constituição, etc.).

Uma coisa importante de ser marcada na Constituição é que ela também estabelece os direitos fundamentais do cidadão. Por exemplo, no art. 5º (que, aliás, tem a reputação de ser o "mais longo artigo constitucional do mundo"), estão estabelecidos diversos direitos fundamentais como: igualdade de direitos e obrigações entre homens e mulheres, livre manifestação do pensamento, proibição da tortura, direito de acesso à informação, direito de propriedade, etc... Não daria para me estender muito aqui já que nesse artigo 5º existem 78 incisos e 4 parágrafos.

A Constituição também estabelece o processo legislativo, ou seja, as regras que devem ser atendidas para que outras leis sejam criadas, as regras de cidadania, direitos sociais, direitos políticos, organização dos partidos políticos, competências legislativas dos diversos entes da federação.

Na maioria dos estados constitucionais (que possuem uma constituição), ela é criada com o intuito de evitar a concentração de poderes em uma única figura ou instituição, e também de dar meios jurídicos de um cidadão se defender contra o estado.

Um conceito que parece ser natural, mas na verdade foi estabelecido nos EUA início do séc. XIX quase que acidentalmente foi o de que a Constituição é a lei maior, no sentido de que, se uma outra lei ou ato do governo for conflitante com a Constituição, esta é a que vale.

Isso tem grande importância na vida das pessoas: se alguém (o governo, por exemplo) faz algo contra você que prejudique algum de seus direitos garantidos pela Constituição, você pode alegar a inconstitucionalidade da lei ou medida que baseou o ato da outra parte. Isso dá segurança jurídica à sociedade, pois evita, por exemplo, que uma prefeitura, um governo estadual ou o governo federal saia emitindo medidas arbitrárias, contrárias aos direitos fundamentais garantidos pela Constituição. Existem várias formas por que se pode contestar a constitucionalidade de uma medida governamental, lei ou decisão judicial, como os recursos extraordinários, ações diretas de inconstitucionalidade, etc. Pretendo falar mais sobre eles no futuro.

Algumas curiosidades sobre a Constituição que nem todo mundo conhece:

  • Art 5º, inciso XI: ninguém pode entrar na sua casa (mesmo sendo você inquilino ou posseiro), à noite, exceto nos casos de "flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro". Isso inclui a própria polícia, mesmo com ordem judicial. É claro que, se algum policial quiser entrar na sua casa com objetivos excusos, vai usar algum argumento como o volume da música que você está ouvido, alegando o delito de romper alguma lei municipal do silêncio.
  • Art 5º, inciso XLVII: não haverá penas de morte em tempo de paz, perpétuas, de banimento, de trabalhos forçados ou cruéis. Pelo menos na lei; na prática, as condições carcerárias são desumanas e, portanto, cruéis e por isso inadmissíveis frente à Constituição.
  • Art 5º, inciso LXVII: ninguém pode ser preso por dívidas, exceto por não pagar pensão alimentícia ou por ser depositário infiel (definido, de uma forma simplificada, como aquele a quem se confia a guarda de alguma coisa e não a restitui quando solicitado legalmente);
  • Art 5º, inciso LXXVI: para os pobres, as certidões de nascimento e de óbito devem ser gratuitas.
  • Art 7º: esse artigo define uma série de direitos do trabalhador, como hora-extra maior que a hora de trabalho normal. Há uma conversa toda para se revogar ou flexibilizar a CLT, o que não vai adiantar nada se não houver também um Emenda Constitucional para alterar o art. 7º!
  • Art 13: a língua portuguesa é a língua oficial do Brasil, não o "miguxês" da internet, nem a montanha de termos e citações em inglês das multinacionais e, principalmente, nem o latim que os juristas e às vezes até juízes teimam em incluir em seus pareceres e sentenças, para parecerem mais inteligentes do que são;
  • Art 22, XXVI: compete à União legislar sobre "atividades nucleares de qualquer natureza"... Isso inclui banhos em estâncias de águas radiativas? Parece que tiveram preguiça de especificar "atividades relativas à exploração de equipamentos e processos que utilizam ou exploram a energia proveniente das reações nucleares de materiais radiativos", ou algo parecido;
  • Art. 229: "Os pais têm o dever de assistir, criar e educar os filhos menores, e os filhos maiores têm o dever de ajudar e amparar os pais na velhice, carência ou enfermidade." - Ou seja, é inconstitucional largar os pais idosos por aí, pobres ou enfermos. Acho um absurdo imaginar que isso precisa estar na lei; mas isso garante que não possam existir leis infra-constitucionais (leis abaixo da Constituição) que contrariem esse importante princípio moral.

Para terminar, um comentário sobre a aplicação dessas regras: uma vez estava conversando com uma amiga sobre essas questões de violência do estado, direitos básicos e etc. Ela ficava muito nervosa quando eu ia mencionando os direitos básicos do cidadão, dizendo algo como: "Que Constituição fantasiosa! Se a Constituição é assim, por que existem crianças com fome, miséria, crimes do colarinho branco, etc. e todos os problemas que conhecemos?"

Porque a Constituição não é a sociedade: ela é a lei que diz como as coisas devem ser, e não como elas são. É um instrumento importante que impede que a opressão seja institucionalizada, que a própria lei legitime os desmandos do governo. É importante que o cidadão saiba que, se há idosos morrendo de frio, se há crianças sofrendo abusos, se há tortura e crueldade por parte do poder público, que isso é ilegal e pode ser combatido na esfera judicial.

Mas, acima de tudo, é importante que as pessoas tenham conhecimento de tais regras, e que tenham a consciência que a Constituição não é a solução dos problemas do país, mas um caminho pelo qual a própria sociedade deve ativamente cobrar posicionamento dos seus representantes para manter as regras gravadas na também chamada Lei Maior. Isso quer dizer que cada um de nós tem a obrigação de ser um "vigia constitucional" do poder público.

Somos responsáveis por nossa omissão. A liberdade é nosso direito, mas tem preço sim. Nas belas palavras de Thomas Jefferson, "O preço da liberdade é a eterna vigilância".

1 comentários (clique para comentar):

  • Anônimo

    Texto muito bacana... ainda mais nessa última semana em que a Constituição Federal completou 25 anos! (05.10.13)... Gostei muito!!!!