sexta-feira, 19 de outubro de 2007

Assinando um papel em branco

Quando a gente é criança, sempre faz (ou sofre) uma pegadinha clássica. Essa aconteceu no bairro onde eu morava, com o Juquinha, típico moleque levado. Aos 8 ou 9 anos, quando ele já sabia escrever e já entendia o poder da assinatura - provavelmente no dia seguinte ao da aula em que a professora explicou o que é uma assinatura -, na hora do recreio ele diz para seu amiguinho bobinho e ingênuo, o Marquinhos:

- Marquinhos, você já escolheu a sua assinatura?

- Ah, eu já! - responde o outro, todo feliz com a novidade. - Quer ver?

- Claro! - E o Juquinha entrega pro amiguinho um papel em branco e completa, apontando para a parte inferior da folha: - Faz aqui!

O Marquinhos fica todo feliz e escreve o próprio nome, mas dá aquela enfeitada, puxando perninha do "M", fazendo piruetas para escrever o "o" e termina com cinco pinguinhos, um sol e uma casinha. Juquinha então diz:

- Agora deixa eu fazer a minha! - E, com um sorriso maquiavélico, escreve na parte superior da folha: "Devo R$1.000,00 para o Juquinha", e mostra para o enganadinho:

- Ahahah! Agora você vai ter que me pagar!

E o coitado do Marquinhos fica desesperado. Isso quando o Juquinha não fazia esse truque com a Paulinha, com uma declaração do tipo "Eu quero casar com o Juquinha", e ela saía correndo atrás dele, para bater. Claro que uma situação como essa terminava, normalmente, com o papel sendo jogado fora e o Juquinha levando alguma bronca por já ter uma certa malandragem latente despertando.

Acho que tem muita gente que cresce e fica meio traumatizado com essa história. Fica morrendo de medo de contratos em geral, achando que vai encontrar algum Jucão pela vida afora e cair em algum golpe do tipo supracitado.

Brincadeiras à parte, os negócios jurídicos (como são os contratos) sempre foram encarados de uma forma um pouco mais séria pelos legisladores. Desde o Direito Romano, já existe essa visão que o negócio jurídico depende da manifestação de vontade das partes, e que essa manifestação de vontade deve corresponder à "vontade interna" da pessoa. É claro que somente a própria pessoa sabe de sua vontade, então se essa manifestação de vontade não corresponde a sua real intenção, o "mundo exterior" não tem como saber. Nesse caso, vale a vontade manifestada.

No entanto, se a outra parte sabe que a vontade da pessoa não é aquela manifestada, o negócio não se completa. Essa é uma das situações que, genericamente, são chamadas de "defeitos do negócio jurídico".

Podemos observar inicialmente o Art. 110 do Código Civil (CC): "A manifestação de vontade subsiste ainda que o seu autor haja feito a reserva mental de não querer o que manifestou, salvo se dela o destinatário tinha conhecimento."

Aqui se encaixa a situação em que um ator, em uma peça de teatro, entrega um relógio de pulso para o outro ator e diz: "fique com esse relógio, não preciso mais dele". Em termos formais, enquadra-se na doação verbal prevista no parágrafo único do Art. 541. do CC: "A doação verbal será válida, se, versando sobre bens móveis e de pequeno valor, se lhe seguir incontinenti a tradição." (tradição, aqui, no sentido de entrega).

Ora, o ator que recebe o relógio sabe que o outro não quer realmente lhe dar o relógio, só está representando. Sabe que sua vontade "interior" não corresponde àquela que foi manifestada. Assim, o negócio de doação não terá validade, mesmo se o donatário quiser dar uma de espertinho e levar a questão à justiça , inclusive alegando ter muitas testemunhas (a platéia).

Quanto à situação do papel assinado em branco, e depois preenchido com um contrato desfavorável na parte de cima do papel, temos várias normas que protegem, em tese, a vítima do golpe. Além da citada anteriormente, temos também, por exemplo, o Art. 422 do CC:"Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé."

É claro que tudo isso depende de se provar, no âmbito judicial, que houve a má-fé, e até mesmo que o contrato foi assinado em branco. É por isso que a maioria dos contratos exige assinatura de testemunhas que podem ser ouvidas em um processo para que se determine que houve realmente a fraude. Certos negócios exigem até mesmo o registro do contrato em cartórios, com firma reconhecida na presença do signatário, para evitar fraudes.

Portanto, é sempre bom evitar assinar papéis em branco ou documentos incompletos, mas não é preciso se desesperar: ainda seria necessário que o golpista entrasse na justiça, de má-fé, para produzir uma prova falsa (falsos testemunhos, por exemplo) alegando que você, na verdade, realmente tinha a vontade manifestada no tal contrato.

Para terminar, um comentário sobre as crianças mencionadas no começo deste artigo: a Paulinha provavelmente saiu correndo atrás do Juquinha para bater porque ela realmente gostava dele. Isso quer dizer que a manifestação correspondia à vontade dela de se casar com ele, mas que ela apenas tinha vergonha de dizer, bem diferente do Zezinho que não queria realmente dar os mil reais. Será que isso fez com que o casamento da Paulinha com o Juquinha seja válido?

Claro que não. Além de toda essa discussão sobre a manifestação de vontade, o negócio jurídico depende da capacidade jurídica das partes. Menores de dezesseis anos são considerados absolutamente incapazes, não podendo, portanto, contrair matrimônio. Além disso, o casamento não se celebra com um reles contrato entre as partes, ele tem uma série de exigências de forma, que serão abordadas neste blog, em um próximo post.

Agradeço à Profa. Andréa Ueda pela revisão.
Agradeço a Rafael Dourado pela ilustração.

5 comentários (clique para comentar):

  • Anônimo

    Interessante post. Vai aí uma dúvida antiga relacionada ao tema. Reconhecer firma em cartório é algo exclusivamente brasileiro (e português)? Nos outros países, parece-me que há todas as proteções citadas no post mas sem a necessidade de reconhecer firmas em cartório.

  • Alberto Lopes

    Prezado Cristiano,

    Respondendo a sua pergunta, existe, sim, o serviço de autenticação de firma em outros países. Aliás, os serviços notariais (reconhecimento de firma, registro de contratos, etc.) existem desde a Roma antiga, na figura dos scribae, tabellius ou notarius.

    A freqüência com que se pede reconhecimento de firma está relacionada a vários fatores: quantidade de atos júridicos, morosidade e segurança jurídica. No Brasil, como os processos são muito demorados, tende-se a buscar mais segurança nos contratos com reconhecimento de firma, para evitar processos demorados.

    Veja a entrevista com Paulo Roberto Gaiger Ferreira , que é interessante para ilustrar ainda mais essa questão.

  • Anônimo

    Se na base de confiança , alguém assina um documento , e em seguida alguém usando de má fé um papel em branco, que na confusão assina , mas depois mais tarde , vem a reconhecer , que a outra parte o usou para seu proveito, lesando o anterior

  • Anônimo

    que devo fazer,? antes de saber se fui lesada , posso obter antes de os factos virem a ser usados para o efeito , e fazer algum documento antes de isso ser divulgado!
    é um caso de divórcio e acho que o meu marido me puxou a perna.

  • sachão

    Bom dia a todos. Estou numa situação desesperante e preciso de alguns aconselhamentos. Depois de contrair um empréstimo para adquirir um negócio, ao fim de pouco tempo, por motivos de incompatibilidade com o trabalho, o meu sócio e eu assinamos um papel sem ser reconhecido por notário, em como ele ficaria encarregue do negócio sozinho. Agora descobri que não pagou mensalidades do empréstimo, não pagou impostos, levantou o dinheiro da conta e encerrou o negócio sem me dizer nada. Agora tenho penhoras por causa dele. Esse tal papel será válido em tribunal a comprovar a má - fé e golpe? Obrigado e no que me puderem ajudar...